A primeira lembrança que guardo de Dona Isabel Leitão – a doce dona Isabel – data da enchente de 1985, quando aos seis anos, o rio Parnaíba encheu tanto, chegando à calçada alta de sua casa, situada na Rua Zuza Machado, em frente ao campo Vieirão. Minha mãe, Maria Moraes, juntamente com dona Hosana Leitão – irmã de Isabel - levaram suas crianças para verem a enchente grande. Chegamos por uma vereda por detrás da casa. Enquanto, elas adultas conversavam sobre o rio e a vida, nós crianças pulávamos da calçada dentro das águas da enchente.
Recentemente, em pesquisas sobre a história da Escola
Antônio Aldir (filho de Isabel,
morto aos 16 anos, em 1984, afogado no Parnaíba) soube de toda dor e trauma até
então sentida por ela. Dona Isabel viveu com depressão por 38 anos devido à
perda de seu filho querida.
Isabel Leitão nasceu em 1936, no povoado Boca da Mata,
em Miguel Alves – PI. Seus pais migrantes cearenses fugitivos das secas
encontraram refúgio no vale do Parnaíba. Anos após, com os oito filhos nascidos, vieram
morar no Garapa, depois adquiriram terras em Coelho Neto, no povoado Taboca, se
fixando definitivo nessa terra. Na
Taboca, Isabel conheçeu o belo jovem Antônio José, donde do casamento nasceram
os filhos Caxico (comerciante), Toinha (professora), Oswaldo (comerciante),
Célia (professora) e Aldir. Com muito amor seus filhos foram gerados e criados.
Na idade escolar dos mesmos, compraram uma casa defronte ao campo, vindos o
casal com os filhos morar na cidade Duque Bacelar.
Quando Isabel e os quadros filhos vivos perderam seu Antônio
José em 2014, ela ficou algum tempo morando sozinha ajudada por netos ou
empregada. Agravando a depressão, a perda da visão, Isabel passou morar com a
filha mais velha.
Nas últimas notícias que ouvimos falar de dona
Isabel, soubemos que estava com a filha em uma chácara no Mocambo Velho. Ao chegar o
novo coronavírus em nossa cidade, Toinha sentiu que sua mãe de 84 anos estava
protegida no meio da mata. Porém, o vírus chegou à capital, interiorizou até as
sedes dos municípios maranhenses, atingindo também povoados e vilas distantes.
Nisto, tendo o
marido de professora Toinha necessidades de sair da chácara para resolver
coisas na cidade, como suas habituais passadinhas em bares, provavelmente foram
o primeiro infectado mesmo sem sentir sintomas. Quando perceberam, entre os
dias 5/6 de Agosto, todos da casa começaram sentir fraqueza, leves dor no
corpo. Fizeram um, dois, três testes em dona Isabel, mas eles não acusavam que
ela estava infectada, mesmo se sentindo fraca e com dores no corpo. Quando, porém, a falta de ar lhe afligiu
severamente, tiveram que interna-la no Hospital Presidente Medice. Nos quatros
dias hospitalizada seu quadro de saúde foi agravado, sendo levado dia 20 de
Agosto para Caxias.
Na tarde do dia 22/8 sem conseguir respirar
naturalmente, com o pulmão mais de 50% infectado pelo vírus, ela então foi entubada. Ontem,
ao voltar do rio Parnaíba encontro sua filha Célia e ao perguntar pelo estado
de sua mãe, recebo a resposta que ela havia partido. Ainda de luto pela perda de Sálvio Dino, mais
triste e mais enlutado fiquei. Em menos de 48 horas, abraçado por duas mortes
pelo COVID 19.
Três horas depois da notícia a ambulância da
funerária que dona Isabel pagava há anos chegou com ela em nossa cidade.
Primeiro parou na casa de sua filha Toinha, a mesma gritava com choro e dor por
sua mãe – pedindo desculpa por não ter podido cuidar dela – assim como os
irmãos e filhos, netos, sobrinhos e os amigos da comunidade. Por cerca de 20 minutos a ambulância ficou
parada, suas luzes vermelhas coloriam a rua, mas ninguém podia abrir a tampa detras do
veículo; não podíamos olhar o rosto de dona Isabel e chorar sobre ele. Ouvi
muito comovido, a professora Clélia Lopes chorando perguntar porque isso estava
acontecendo com a humanidade.
Saindo o carro branco da funerária da Rua Zeca Barão,
dirigiu - se para a casa que dona Isabel morou anos. Fomos seguindo em carros e
motos particulares, formando um cortejo fúnebre confuso. Nas ruas e frentes das
casas as pessoas da comunidade olhavam tristes.
Na casa de Isabel o carro com ela demorou mais tempo,
então os seus vizinhos de anos se juntaram a todos nós que já chorávamos.
Diante da situação incomum de não podemos ver nada de corpo, nem o caixão do
falecido, protestei ao Mercim - responsável pela Vigilância Epidemiológica - afirmando que o Estado brasileiro não tinha o
direito de proibir as pessoas de ver seus entes queridos, até mesmo o caixão.
Edvanilson, um dos netos mais velhos de dona Isabel, pediu que o motorista abrisse
a tampa detrás. Assim, vimos o caixão, logo chorando e se comovendo mais ainda.
No cemitério Julião, quando o caixão desceu a cova,
perguntei ao Caxico, filho da falecida se o túmulo vizinho era de Antônio
Aldir, recebendo resposta positiva.
Enquanto o barro seco cobria dona Isabel dentro do caixão, olhei para o alto,
além das estrelas, imaginei então o reencontro dela com seu filho Antônio
Aldir, o grande abraço que ela recebeu dele e dos demais ancestrais dela
que já haviam partido.
Voltei para casa muito triste, tendo forte a cena do reencontro dela na eternidade com os seus que amou aqui. Essa será a partir de então a última lembrança que dela guardaria em minhas memórias.
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